Pra dar mais vida à vida

Não pra animar a fraqueza

Mas pra dar mais vida à vida”

Enquanto levava Elisa (8 anos) pela mão para escola ela cantarolava este samba/poema primoroso de Dona Ivone Lara. Eu, por minha parte, me apaixonei pela letra quando, pela primeira vez, estive “presente” ao ouvi-la. Falo “estive presente”, pois devo tê-la ouvido muitas vezes antes, mas um dia eu a escutei e percebi a profunda/dolorosa/leve/alegre verdade contida nos versos. 

Instantes depois observamos o céu e havia uma nuvem, ou conjunto de nuvens, com formatos que nos chamaram atenção, eu e Elisa passamos a “procurar” imagens (símbolos) escondidos nelas. Eram flores, ou asas de anjo e finalmente o rosto de um felino na parte inferior…

Faz poucos dias que fui literalmente “acusado” de querer dar significados indevidos para as coisas que acontecem perto de mim, quase que como se eu realizasse um movimento invasivo na realidade de outra pessoa através da minha interpretação. Será? 

Sim, eu faço isso! Mas não sei se é invasão… 

Desde pequeno, busco interpretar a realidade à minha volta.

“O monge que habita em nós é estreitamente ligado à criança que existe em nós ou, se quiser, ao místico em nós – pois somos todos destinados a ser místicos.

E não há ninguém, e nunca houve ninguém, e jamais haverá alguém que possa experimentar a Realidade Suprema da mesma maneira que você a experimenta.”

” David Steindl-Rast – O Caminho do Silêncio – página 38

Quando crianças estamos, em boa parte do tempo, buscando estes significados, mas, com o tempo, “o mundo” nos impõem os seus próprios significados.

E o samba começa assim:

“Força da Imaginação

Vai lá

Além dos pés e do chão

Chega lá

Porque que a mão ainda não toca

Coração um dia alcança.”

Nós seres humanos somos naturalmente cheios de esperança (imaginação) e podemos encontrar significado em cada momento, em cada partícula da realidade que captamos. Afastar-se desta capacidade nata é afastar-se de nossa essência, é abrir mão de participar do próprio processo de criação da própria realidade.

“Quando um poeta compõe mais um samba

Ele funda outra cidade

Lamentando a sua dor

Ele faz felicidade

Força da imaginação

Na forma da melodia

Não escurece a razão

Ilumina o dia-a-dia”

Não há alquimia mais bela, verdadeira e profunda que a de transmutar a dor em felicidade. Transmutar chumbo em ouro nada mais é do que isso. Nossa capacidade humana de “chorar de felicidade” é uma prova dessa possibilidade. Chegar ao êxtase num momento de grande provação (como um atleta quando completa uma prova muito difícil) é outra evidência desta realidade. Como na estrofe do samba:

“Força da imaginação

Se espalhando na avenida

Não pra animar a fraqueza

Mas pra dar mais vida à vida.”

“… tinha o olhar primitivo que capta das alturas, como uma flecha, o seu alimento; a simplicidade criativa, renovada a cada manhã, a perceber incessantemente todas as coisas como se fosse pela primeira vez e a conceder virgindade aos eternos elementos cotidianos – ar, mar, fogo, mulher, pão; a firmeza da mão, o frescor do coração, a coragem de caçoar de sua própria alma, como se ele tivesse internamente uma força superior à alma e, por fim, a áspera risada gorgolejante, vinda de uma fonte profunda, mais profunda do que as entranhas do homem e que, nos momentos críticos, irrompia libertadora do velho peito de Zorbás, irrompia e podia demolir (e demolia) todas as barreiras – moral, religião, pátria – que o homem, infeliz e medroso, ergueu em torno de si para mal e mal tocar com segurança sua vidinha. Zorbás ensinou-me a amar a vida e não temer a morte.” Nikos Kazantzákis – Vida e Proezas de Aléxis Zorbás – pag 8

Por isso continuarei sendo o cara que busca significado também nas coisas pequenas, talvez até banais. Mesmo que na maior parte do tempo não preste muita atenção aos grandes eventos (políticas, guerras, ideologias, catástrofes,…). 

“A venturosa intuição de saciamento operado por Deus pode inflamar-se em tudo com que nos deparamos, mesmo que seja o motivo mais insignificante. 

O olhar deve se dirigir diretamente ao coração das coisas. Nessa profundeza vai se revelando, então, uma relação infinita que antes ficara encoberta; só assim se realiza a índole essencial da contemplação.”  Josef Pieper – Felicidade e Contemplação

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